Além da Imaginação Real

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terça-feira, 21 de novembro de 2017

Contos do Além: O Guardião!



Ricardo era um jovem cirurgião bem sucedido que resolveu aproveitar as férias para realizar um antigo sonho que tinha, viajar pelo país de moto com uma mochila nas costas.
Na estrada, certa tarde foi surpreendido por uma forte tempestade e teve que passar a noite num hotel em um pequeno povoado no interior de Goiás.
O dono do hotel era um velho decrépito que aparentava ter uns 90 anos de idade ou mais. Andava com uma bengala e vestia um avental por cima de um antigo terno marrom puído e cheirando a mofo.
Porém, apesar da idade muito avançada, era um senhorzinho lúcido e parecia muito bem disposto; talvez não fosse tão velho quanto aparentava. 
Além de Ricardo, havia mais dois hóspedes no hotel, eram dois homens de aparência bizarra. Um deles era alto e magro, de olhos fundos e olheiras roxas, era calvo até a metade da cabeça e daí para baixo tinha cabelos compridos e grisalhos. O outro homem era ruivo, baixote e atarracado, de bigode e cavanhaque. Os dois teriam entre 50 e 60 anos de idade, e assim como o velho dono do hotel, também vestiam ternos antigos do início do século XX.
O hotel era um velho sobrado com janelões de madeira, os móveis eram antigos mas bem conservados. Tudo no hotel era bem velho. A energia elétrica era precária, não havia televisão, apenas um rádio antigo. Naquela região não tinha sinal para celular ou internet, o único telefone disponível era um antigo telefone preto que mais parecia uma peça de museu. O lugar era isolado, muito distante da modernidade das grandes cidades. Estar ali era como viajar no tempo, voltar ao passado. Era um ótimo lugar para descanso, ideal para se passar uns dias longe da agitação e do estresse da vida moderna.


Naquele fim de tarde, depois de um relaxante banho de banheira, Ricardo descansou um pouco no seu quarto até a hora do jantar. A mobília dos quartos também era antiga mas confortável, apesar do cheiro de mofo. À hora do jantar, o rapaz se juntou aos outros dois hóspedes que já estavam sentados à mesa. Ao entrar na copa, Ricardo ouviu o homem alto e magro dizer ao outro:
- O tempo dele está acabando. 
Seriam por volta de sete da noite. Ricardo observou um antigo relógio de parede, parado nas doze horas. Pelo tempo que esse relógio devia ter, com certeza há muito tempo não funcionava mais.
- Boa noite. 
disse Ricardo, sentando-se à mesa com eles. 
- Boa noite, doutor.
Respondeu sorridente o homem ruivo e atarracado.
Ricardo estranhou ser chamado de "doutor", pois não se lembrava de ter dito que era médico.
- Como sabem a minha profissão? 
perguntou Ricardo.
Os dois homens trocaram um estranho sorriso. O homem ruivo respondeu:
- Não sabemos. Mas eu reconheço de longe uma pessoa instruída, e logo vi que você é um doutor. Me parece ser advogado ou engenheiro...estou certo?
- Quase amigo. Sou médico.
-É uma bela profissão. Apesar de moço, você parece ser um bom médico.
Disse o velho proprietário do hotel, que vinha da cozinha trazendo uma tigela de sopa.
- Eu faço o possível. Sou cirurgião e amo o que faço. Não há nada mais gratificante do que salvar vidas, e o melhor de tudo é encarar a morte e ganhar o jogo.
- Então gosta de desafios, doutor?
Perguntou o velho.
- Sim, gosto muito! Desde criança sempre gostei de desafios. Gosto de viver perigosamente, os perigos e riscos sempre me atraíram.
- E qual é o motivo que o trouxe a este fim de mundo? Será também algum desafio?  Perguntou o hóspede alto e magro.
- De certa forma, sim. Eu pretendo atravessar todo o país de moto. 
- Interessante. Considerou o velho dono do hotel, sentando-se à mesa com os hóspedes. 
- Sabe, rapaz, eu também já fui assim quando era jovem, eu também gostava de desafios e aventuras. Um dia vim parar aqui e acabei ficando de vez, quem diria...Mas isso já faz muito, muito tempo.


Lá fora chovia forte, neste momento a luz se apagou, e em seguida ouviu-se o rugido furioso de um trovão. O velho dono do hotel acendeu algumas velas e deu prosseguimento à conversa:
- Aqui o tempo passa devagar. Nunca acontece nada de novo. É raro aparecer algum forasteiro como o doutor neste fim de mundo.
-  Eu gostaria de saber como o povo daqui consegue viver sem internet, celular e tv. O que vocês fazem à noite? Perguntou Ricardo.
O ancião respondeu:
- O povo daqui costuma se recolher cedo. A esta hora todos no povoado já se recolheram. Depois das seis da tarde, quando começa a escurecer, não se encontra uma alma viva nas ruas. A noite pertence aos mortos, doutor.
Ricardo riu, achando graça:
- Sério? Não me diga que vocês têm medo de fantasmas!
- Então o doutor não tem medo do sobrenatural? Perguntou-lhe o hóspede alto e magro. 
- Claro que não. Eu não acredito nessas coisas, fantasmas não existem.
- Se eu fosse o doutor, não teria tanta certeza. Disse o hóspede ruivo e gordo.
- Cuidado doutor. Não se deve desafiar o sobrenatural. Com os mortos não se brinca. Advertiu-lhe o hóspede alto e magro.
Ricardo ria, divertindo-se.
- Que nada! Eu não tenho medo nem dos vivos, vou lá ter medo dos mortos? Mortos não voltam.
Com o semblante muito sério, o ancião replicou:
- Aí é que o doutor se engana. Os mortos vagam pelas sombras da noite e não gostam de serem desafiados.
Ricardo continuava rindo:
- Vocês só podem estar de brincadeira. 
-  O doutor seria capaz de desafiar os mortos? Perguntou-lhe o proprietário do hotel.
- Eu sou capaz de desafiar até o capeta! Respondeu Ricardo, em tom de brincadeira.
- Então, já que o doutor não tem medo do sobrenatural, nós temos um desafio para lhe propôr. Disse o hóspede alto e magro.
O velho dono do hotel continuou:
- O doutor teria coragem de ir sozinho ao cemitério do povoado, à meia-noite, arrancar a cruz de um túmulo e nos trazer como prova?
Sem pensar duas vezes, Ricardo respondeu muito seguro de si:
-  Aceito o desafio, a meia-noite eu estarei lá. Como eu disse, não acredito em histórias de fantasmas e vou provar aos senhores que fantasmas não existem.
Assim ficou combinado.


Quando faltavam poucos minutos para a meia-noite, Ricardo se dirigiu ao cemitério do povoado, enquanto o velho e os dois outros hóspedes ficaram esperando por ele no hotel.
A chuva havia parado, mas ainda continuavam sem energia elétrica em toda a região. Porém a escuridão da noite não intimidou Ricardo.
Ao passar pelas ruas desertas e escuras do povoado, Ricardo sentiu um frio cortante, mesmo estando agasalhado com uma jaqueta de couro o rapaz sentiu um estranho arrepio.
Encostou a moto em frente ao cemitério e entrou, forçando um pouco o portão enferrujado, que não ofereceu resistência.
Com uma lanterna na mão, foi iluminando os túmulos à procura de uma cruz mais fácil de ser arrancada. Até que encontrou uma pequena cruz já parcialmente ruída pelo tempo e conseguiu arrancá-la com facilidade. Quando terminou de fazer isso, sentiu um vento gelado e ouviu uma voz grave e cavernosa, que lhe deu arrepios:
- O amigo perdeu alguma coisa aqui?
Assustado, Ricardo se virou e com a luz da lanterna, viu um homem alto de aparência sinistra, com uma capa preta e um chapéu na cabeça.
Tinha uma barba comprida e acima dela, uma cicatriz no rosto em forma de meia lua.
- Quem é você? Ricardo Perguntou, já começando a ficar com medo.
- Eu sou o coveiro. Respondeu o homem.
Neste exato momento, no túmulo de onde havia arrancado a cruz, Ricardo viu surgir um antigo relógio de parede marcando meia-noite em ponto.
Reconheceu o mesmo relógio que tinha visto parado na sala de jantar do hotel. E assim que o relógio começou a tocar as doze badaladas da meia-noite, o coveiro deu uma gargalhada assustadora, agarrou a mão do rapaz e apertou-a fortemente. Aterrorizado, Ricardo não conseguia dizer uma palavra nem esboçar nenhuma reação. Queria sair correndo dali, mas não conseguia se mover, petrificado de pavor. Quando o relógio tocou a última das doze badaladas, finalmente o coveiro soltou sua mão, e então já não era mais o coveiro e sim um esqueleto humano, cujos ossos se desmancharam no chão.


No hotel, o velho e os dois hóspedes esperavam por Ricardo. Quando ele voltou, trazia a cruz como prova e estava pálido de terror, mal conseguia falar.
Então o velho atirou as mãos para cima:
- Estou livre! Finalmente livre! 
Neste momento, a luz voltou e Ricardo viu com horror que a pele das suas mãos estava se deformando, se enrugando. Apavorado, tirou a jaqueta e viu que a pele dos seus braços também sofria a mesma transformação. Passou as mãos pelo rosto e sentiu toda a sua pele enrugada. Olhou-se então no espelho da sala e viu-se transformado em um ancião.
Toda a sua pele se tornou enrugada, seus cabelos embranqueceram. Havia envelhecido uns 60 anos em poucos minutos. 
Ricardo tinha agora a aparência de um ancião centenário. Havia se transformado no velho dono do hotel. 
- O que está acontecendo comigo?? Perguntou ele desesperado.
O dono do hotel então explicou:
- Há exatamente cem anos, eu também estava de passagem por aqui, me hospedei neste hotel, e aceitei o desafio de ir buscar uma cruz no cemitério à meia-noite. Desafiei os mortos e paguei caro por isso. Esta foi a maldição que caiu sobre mim: durante cem anos eu fui o guardião do mundo dos mortos. Agora estou livre, você me libertou.
- Não, não, isso não pode estar acontecendo comigo! Dizia Ricardo, desesperado.
O antigo dono do hotel continuou:
- A partir de agora, você será o novo guardião dos mortos por cem anos. Terá que permanecer aqui até que outro tome o seu lugar. Você só ficará livre da maldição, quando outra pessoa aceitar o mesmo desafio à meia-noite no cemitério, daqui a cem anos, quando o portal do mundo dos mortos se abrirá novamente. O portal só se abre a cada cem anos, à meia-noite.
Dizendo isso, o antigo guardião tirou o avental e passou-o ao seu sucessor.
- Adeus, e boa sorte.
Desesperado, Ricardo debruçou-se sobre a mesa e só lhe restou chorar e se lamentar.
- Não chore. Disse o hóspede ruivo. 
- Ao menos você não ficará sozinho. Eu e meu companheiro Astolfo te faremos companhia. Nós dois moramos aqui há séculos.


Desde então, Ricardo que um dia já foi um cirurgião promissor e agora é o Guardião dos Mortos. Lá está ele na companhia de dois espíritos, arrependido da sua audácia e lamentando o seu infortúnio, enquanto espera ano após ano, o tempo que passa devagar, até chegar o dia de se libertar dessa terrível maldição.

Nunca desafie o sobrenatural, você poderá se arrepender!

Pesquisa e Adaptação por: Milena Zorek!


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