Relatos do Além #11: Fera Assassina (Lobisomem)
Se
minha vontade foi cumprida de acordo com o meu testamento, este
manuscrito chegou às suas mãos após a minha morte. Se assim não o for,
peço a gentileza para que interrompa a leitura e o desconsidere.
Contudo, se minha ordem foi devidamente obedecida, recomendo que leia o
texto até o final, pois creio que o relato que faço aqui é de grande
importância para esclarecer um misterioso caso ocorrido há dez anos
atrás lá pelas bandas da Campina Velha, do qual muita gente ouviu falar,
mas que apenas uns poucos sabem da verdade. Lembro-lhe que, embora
tenha tido excelentes tutores na infância, não sou um homem das letras,
mas apenas um fazendeiro, e escrevo como tal. Seja tolerante, portanto,
com o que julgar deficiente em minha redação. Também destaco que não
gastarei tinta a papel para tentar convencer-lhe de que aquilo que
afirmo aqui é verdade. Prefiro acreditar que a minha reputação é
suficiente para lhe assegurar a seriedade com que traço estas linhas.
Meu envolvimento com essa história iniciou na noite em que os senhores
José Cognesce e Ademar Pecatti compareceram à minha casa pedindo ajuda.
Como deve saber, eles são os proprietárias das fazendas São Luís e
Montes Claros, as duas maiores da região da Campina Velha. Contaram-me a
assombrosa história do misterioso animal que vinha atacando por aquelas
bandas. Segundo as palavras dos assustados senhores, mais de uma dezena
de vacas já havia sido morta, além de quatro cavalos e quatro cães. E o
pior: três pessoas já tinham sido vitimadas pelo bicho desconhecido,
sendo dois capatazes da fazenda Montes Claros e até o senhor Miguel
Cognesce, pai de José e fundador da fazenda São Luís.
Ao longo de
onze meses, a mortandade de animais continuou, apesar de ocorrerem com
intervalos de algumas semanas entre as fases de ataques. Nesse período,
vários grupos de caça foram montados, tendo inclusive o senhor Pedro
Paulo Escopel, Chefe de Polícia, participado da maioria deles. Nada foi
encontrado. Parecia que a fera simplesmente desaparecia durante o dia,
e, durante a noite, ninguém se animava a realizar buscas muito além dos
limites das propriedades. Embora não admitissem, o medo tomava conta de
todos e os impedia de se embrenharem no interior da floresta encoberta
pela escuridão.
Conhecendo a minha fama de hábil caçador, aqueles
homens vieram até mim implorando para que eu os ajudasse a dar cabo do
animal assassino. Mencionaram as histórias que circulavam pela região
sobre as onças que matei e disseram que, se havia alguém capaz de pegar o
bicho que tanto os atormentava, esse alguém era eu. Ofereceram-me
dinheiro, juntas de boi e potros como recompensa. Sensibilizado, eu
disse que iria, muito mais pela vontade de ajudar e pela curiosidade que
o dito animal me despertava do que propriamente pelo pagamento.
Contudo, apressei-me em dizer não achava possível que uma onça fosse a
responsável pelos ataques, pois embora elas costumeiramente possam matar
ovelhas e novilhos, não é comum que o façam com cavalos e gente. Nunca
vou me esquecer da expressão de medo daqueles homens ao acenarem com
suas cabeças, concordando comigo.
Hospedei-me na fazenda São Luís,
na qual chegamos na tarde seguinte, e sugeri que iniciássemos a caçada
naquela mesma noite. Porém, o senhor José sugeriu que esperássemos para a
noite posterior, onde teríamos lua cheia. Concordei, pois todos sabem
que ao luar a visibilidade é muito melhor, a ponto de, por vezes,
podermos até dispensar o uso de tochas e lampiões. Apenas no dia
seguinte fui entender que o motivo da sugestão era outro. Percebi isso
quando o senhor José ofereceu-me um revólver. Analisei-o com curiosidade
e constatei espantado que ele estava carregado com balas feitas de
prata. Meu anfitrião então explicou que essa arma estava em posse de seu
pai na noite em que ele foi morto. Acabou contando-me também que alguns
peões afirmavam ter visto um animal enorme e cinzento correndo sobre
duas patas pela campina em certas noites em que ocorreram mortes de
gado. Todos por ali já tinham ouvido os medonhos uivos da criatura pelas
madrugadas e estavam convencidos de que se tratava de um lobisomem. Por
isso a tal fera nunca era encontrada durante o dia, por mais que se
vasculhasse a região com dezenas de homens e cão farejadores.
Surpreso, respondi que não acreditava em assombração e coisas do tipo,
mas se a idéia lhe agradava, eu levaria a arma comigo. Afinal, percebi
que as balas estavam bem calibradas e, se fosse necessário, teriam a
mesma serventia de quaisquer outras.
Quando escureceu nos preparamos
para sair e percebi com espanto que apenas José e Ademar me
acompanhariam. Segundo eles, os peões estavam muito amedrontados e
preferiam ser mandados embora a ter que vir conosco. Resignados,
embrenhamo-nos na mata, que, naquela altura, já estava debaixo da luz
esbranquiçada da lua cheia. Seguindo a lógica, andamos sempre na direção
do rio, mas caminhamos por quase uma hora sem nada encontrar.
Em
certo momento, José anunciou que estávamos nos aproximando do local onde
o pai dele havia sido morto, e foi ali que as coisas aconteceram. Antes
que os meus companheiros se dessem conta, ouvi o som de folhas sendo
pisadas e vi um vulto se movimentando no interior da mata, como se
estivesse tentando nos cercar. Adverti aos outros, mas quase que
instantaneamente a fera surgiu detrás das árvores e agarrou Ademar,
arrastando-o para a escuridão. Eu e José corremos naquela direção, mas
bastaram alguns momentos de hesitação, onde não atiramos por receio de
ferir nosso companheiro, para que a besta o destroçasse com suas presas e
garras afiadas. Era uma criatura horrível, enorme e furiosa como eu
jamais vira. Ela largou o corpo despedaçado de Ademar e saltou na
direção de José. Apavorado, o pobre homem nem mesmo tentou atirar. Jogou
sua espingarda no chão e correu em desespero na direção do rio.
Confesso que, diante de visão tão pavorosa, senti vontade de fazer o
mesmo.
Porém, para a sorte de todos, esse momento de fraqueza me
dominou por apenas um curto instante. Ergui minha espingarda na direção
da fera, que corria à minha direita, e atirei. Disparei quatro vezes e
tenho certeza que acertei todos os tiros. A besta rugiu, cambaleou,
chegou mesmo a cair, mas logo se levantou com um salto e partiu
velozmente para cima de mim. Deus deve ter me iluminado nessa hora, pois
fui muito rápido em largar a espingarda e sacar o revólver que trazia
na cintura, carregado com as balas de prata que pertenceram ao pai de
José. Esperei até a fera chegar bem perto, tão perto que eu pude sentir o
seu bafo fedorento em meu rosto, e então atirei. A bala acertou a besta
na cabeça, pouco acima do olho esquerdo. Rosnando, ela caiu centímetros
ao meu lado, de forma que aproveitei para disparar mais três vezes
contra suas costas. Foi então que presenciei a cena mais impressionante
da minha vida: o corpo sem vida da besta se transformou em um homem!
Nesse instante, José já havia ajuntado sua espingarda e se aproximava
desconfiadamente. Foi ele quem primeiro reconheceu a fisionomia daquele
cadáver corpulento e grisalho. Acredite-me, Senhor, pois eu estava lá e
também vi com os meus próprios olhos: era o padre Rômulo! Todos ficaram
espantados quando, cerca de um ano antes, o vigário desaparecera sem
deixar vestígios ao atravessar a floresta. Depois de meses de buscas
incessantes e sem resultados, ele foi finalmente dado como morto. Porém,
ali estava o sacerdote aos nossos pés, nu, ensanguentado e dessa vez,
realmente sem vida.
Como esse triste destino foi se abater sobre o
padre é algo que nunca saberemos, da mesma forma que também
desconhecemos o local em que ele se escondia durante o dia, de forma a
não ser encontrado pelos inúmeros grupos de busca que varreram a
floresta durante tanto tempo. De comum acordo, José e eu decidimos
enterrar o corpo do vigário ali mesmo, e manter essa pavorosa revelação
no mais absoluto segredo. Apenas nós é que deveríamos carregar este
terrível fardo.
Depois daquela noite, as mortes na região da Campina
Velha cessaram por completo, embora com o passar dos anos eu tenha
ouvido relatos de outras semelhantes em diversas partes do nosso Rio
Grande. A ideia de um dia encontrar outra criatura como aquela no meio
da mata passou a me assustar de tal forma que abandonei definitivamente
minhas atividades de caça, em uma atitude que gerou muita controvérsia e
desconfiança entre todos que me conheciam. As pessoas não se
conformavam com o fato de que o maior caçador que já haviam conhecido
simplesmente passou a odiar a ideia de se embrenhar na floresta
novamente, e sempre que o assunto vinha a tona, exigiam algum tipo de
explicação de minha parte, algo que me recusei a fazer durante todo esse
tempo, mas o faço agora, através deste manuscrito, ao saber que não me
restam mais muitos dias de vida.
Rogo para que dê crédito às minhas
palavras e compreenda minha atitude, Prezado Senhor, e, se possível,
inclua meu nome em suas orações noturnas. Espero ter, depois de morto, a
paz que vem me faltando nesses últimos dez anos de minha vida.
Que Deus o abençoe!
Relato enviado por: Adriano Pinheiro Sidrão.
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